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Ilustração de uma mulher deitada de perfil

Ilustração por Marta Pucci

Tempo de leitura: 5 min

"Eu tive um aborto espontâneo, e é a primeira vez que escrevo sobre isso"

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*Por motivos de privacidade, a identidade da autora foi omitida

O tempo ajuda. É o remédio mais efetivo contra a dor, em qualquer circunstância. Alivia, suaviza, vai melhorando o aperto no estômago, aligeirando aquele sufoco que quase nos impede de respirar. Sabemos que é assim mas, quando o chão nos engole, não temos tempo para pensar no tempo que precisamos nos dar. Sofremos, cada qual à sua maneira.

Foi preciso tempo para conseguir partilhar a minha história, que sei que é a de muitas mulheres. Podia ter sido pior, podia ter sido melhor, podia ter sido diferente, podia, mas esta é a minha história. Não é um capítulo de um livro de ficção, um episódio de uma novela ou um apanhado de uma revista. É real. E acontece todos os dias, a todas as horas.

Eu tive um aborto espontâneo às 11 semanas de gravidez.

Eu, uma mulher saudável, na altura com 32 anos, tive um aborto espontâneo. Biologicamente não podemos chamar-lhe bebé com tão pouco tempo de vida, mas, que se lixe a ciência, eu perdi o meu bebé com 11 semanas. E o pior? Não consegui fazer nada para o evitar.

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Imagem padrão

Quando o teste deu positivo a cabeça só me deixava pensar nele. Não cheguei a dar-lhe nome, sei que muitas mulheres o fazem, era só o meu "pequeno ser". A esta altura não estava a tentar engravidar mas a notícia foi bem-vinda. Conhecia as estatísticas, os riscos, repeti-os só para mim, mas também os dizia alto. Mas, mais uma vez, que se lixe a ciência, eu ia ter um bebé e tinha todo o direito de pensar nele. Estava ali, dentro de mim, a ganhar forma, a ganhar vida, a crescer, um coração a bater mais rápido que o meu. Pensei em mim, nele, em nós, no futuro, no primeiro ano, no segundo, na escola, na faculdade, no casamento, a falar, a cantar, a dançar. Sim, eu sei que cerca de um quarto das mulheres sofre abortos espontâneos antes de concluir o primeiro trimestre, mas acreditava que podia enganar esses números. Ia ser mãe. As análises indicavam isso. As ecografias mostravam isso. Os médicos atestavam isso. Queria lá saber das estatísticas!

E correu tudo bem, corria tudo muito bem, até que deixou de correr. Até que chegaram as dores, uma sexta-feira à tarde. Até que comecei a perder sangue. Até que fui ao Hospital Santa Maria, em Lisboa. O meu marido não estava no país por motivos profissionais mas, felizmente, tinha os meus pais comigo. Às dores juntava-se o medo, tinha que repousar e depois "logo se veria". No dia seguinte as dores voltaram, mais fortes, tal como a hemorragia. Mais uma noite sem dormir, horas e horas a tentar mentalizar-me que o pior podia acontecer. Procurava na internet testemunhos de outras mulheres, alguma coisa a que me agarrar, queria ler que aquilo tudo era normal, que ia correr tudo bem. Mas só encontrava o contrário.

Pousava a mão na barriga, acariciava-a e pedia ao meu "pequeno ser" que se agarrasse com força enquanto eu tentava lutar por ele. Mas não havia nada a fazer, o meu corpo estava a rejeitá-lo. Mais tarde explicaram-me que é quase um processo de defesa, quando algo está errado no crescimento e desenvolvimento do feto, o corpo expulsa sem nos consultar. Quando as dores terminaram, sabia que tudo tinha acabado, eu tinha perdido a luta.

A ecografia acabou por confirmar, o coração tinha deixado de bater e, mais uma vez, senti impotência. Senti muitas coisas na verdade. Senti tristeza, dor, medo, um vazio imenso, senti-me injustiçada, envergonhada. Pensava em todas as minhas amigas que tinham bebés saudáveis, gravidezes saudáveis, crianças saudáveis. E eu não, eu não tinha esse direito. Como não bastava o sofrimento psicológico, seguiu-se o físico: tomei comprimidos para expulsar o embrião sem vida, comprimidos para as dores e um calmante (nunca antes tinha tomado um). Dessa noite lembro-me do choro, da mágoa e das torradas com manteiga da minha mãe que tornaram tudo um bocadinho mais fácil.

Seguiram-se dias de luto. Não fui trabalhar, não me sentia capaz de enfrentar o mundo. Muitas mulheres são obrigadas a fazê-lo logo depois de um episódio destes. Esquivei as perguntas dos colegas curiosos, dos amigos preocupados, contei a muito poucas pessoas e tentei reerguer-me. Tive muito medo do futuro, de não conseguir engravidar novamente, de ter mais abortos espontâneos, de não conseguir esquecer o trauma. Não esqueci, nunca vou esquecer. Mas recuperei, engravidei novamente e hoje tenho um bebé.

Escrevo este texto para quem tem medo de passar por algo semelhante, para quem está a passar por algo semelhante, para quem já passou por algo semelhante. É difícil, sim, é, mas não abandonem, não se sintam frustradas, nem culpadas, não se sintam menos mulheres, não se sintam inferiores. Nem sempre tudo depende da nossa vontade mas ela é fundamental para tudo.

Principalmente: não se sintam sozinhas!

A sociedade pode ainda não estar preparada para lidar com estas situações e normalizá-las mas, essa mudança, depende de todas nós.

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